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SAUDADE DO MUNDO ANTIGO DE FEVEREIRO DE 2020!

SAUDADE DO MUNDO ANTIGO DE FEVEREIRO DE 2020!

tulipas-coloridas-4 SAUDADE DO MUNDO ANTIGO DE FEVEREIRO DE 2020!  
*EDNA PERROTTI
Oficialmente, a nossa quarentena começou no último dia 25, mas nós, os idosos, já estamos dentro de casa há quase duas semanas, ainda mais se temos filhas – e filhos – que ficam nos cuidando o tempo todo, exigindo que não ponhamos os pés pra fora, pois o bicho-papão invisível pode nos pegar… Os papéis se inverteram!

Como as estatísticas mostram que o índice de sofrimento e de mortalidade é maior entre os idosos, os jovens agora estão ultrapreocupados conosco, com nossa alimentação, com nosso bem-estar. Ontem mesmo, Deise, uma vizinha, parou o carro em frente em minha casa e se dispôs a comprar alguma coisa se eu precisasse. Mais à tarde, outra vizinha, a Dani, de 40 e poucos anos, me passou uma mensagem perguntando se estávamos bem e que pedíssemos o que fosse necessário. Tempo de clausuras, mas também de mesuras (que palavrinha antiga!).

A verdade é que nem os mais jovens nem nós nunca imaginamos uma situação de confinamento como essa. Confinamento voluntário dias atrás. Confinamento obrigatório a partir de agora. E não sabemos até quando!
Como muitos de vocês, eu estou com medo. Por que não confessar? E confesso que bastante. Não da solidão, da ausência física da minha filha, dos meus irmãos, dos meus sobrinhos, dos pequenos, dos amigos… de tantas pessoas de nosso convívio! A gente até ameniza a saudade pelas mensagens por vídeo, por voz.
Meu medo é de ficar doente, de não poder respirar, de saber que muitas pessoas vão adoecer e têm muito menos condições que eu, não têm plano médico, vivem em situações de insalubridade total. Medo de não saber como será a situação econômica no mundo todo, daqui a 4, 5, 6 meses. E daí já dá uma saudade imensa de um mês atrás, quando mal imaginávamos o que estava – e está – por vir, e íamos ao supermercado, ao cabeleireiro, ao shopping, almoçar fora…
À medida que escrevo e que releio este texto, me lembro de um poema de Drummond que me faz refletir muito:

LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças,
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!! Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!


(ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Sentimento do mundo. Poesia completa e prosa. RJ: José Aguilar, 1973)
Lendo o poema em voz alta, me aquieto, me acalmo. Olho o cair da tarde pela janela e fico esperançosa.
Penso que, quando setembro chegar, vamos ter muito a comemorar!
Vamos valorizar ainda mais o verde do gramado, o azul do céu pelas manhãs, as estrelas cintilantes à noite, as risadas gostosas das crianças. Todos os nossos sentidos estarão abertos para saborear a vida na companhia das pessoas amadas. Quem sabe o mundo inteiro, inteirinho mesmo, esteja bem tranquilo a nosso redor. Quem sabe – e como isso seria bom! – os poderosos e arrogantes, os orgulhosos e não tão poderosos percebam o verdadeiro valor da paz, da humildade, da igualdade e da fraternidade… Quem sabe!

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*Edna Perrotti é doutora em Linguística Aplicada pela PUC/SP, onde foi professora de Língua Portuguesa e de Redação. Também trabalhou durante mais de 20 anos na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), nos cursos de graduação e pós-graduação. É membro honorário da Academia Paulista de Educação e diretora da Contexto Assessoria em Língua Portuguesa. Professora de cursos na área corporativa, escritora e palestrante, publicou, entre outros, os livros Superdicas para escrever bem diferentes tipos de texto (com edição italiana: i Superconsigli – Scrivere Bene), e o Superdicas para manter seu português em ordem (como coautora), ambos pela Editora Saraiva.




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